Entrevistada:
Denise Del Vecchio
Por
Nanda Rovere e Lell
Trevisan
Del.Art: Como o teatro surgiu na sua vida?
Denise Del Vecchio:
Foi meio por acaso. Eu tive um professor de Geografia na escola,
na Escola Estadual de Educação Prof Alberto Comte,
lá em Santo Amaro, que amava teatro e, ao invés
de dar aula de Geografia, ele levava os alunos para assistirem
aos espetáculos de teatro. Garota com 14, 15 anos, fui
pela primeira vez ao teatro assistir Morte e Vida Severina,
que era a montagem que o Tuca tinha feito e levado para o Festival
de Nancy. Eu vi no Teatro Municipal, nunca tinha visto uma peça
teatral e fiquei alucinada. Meu pai nos levava ao teatro, mas
para ver concertos matinais, aos domingos. O teatro de prosa
eu ainda não conhecia e fiquei apaixonada por isso e
me deu um desejo de estar no palco. Só que eu me achava
muito velha para começar a pisar num palco. Vários
acasos foram acontecendo, como um professor que ensinou, na
escola Auguste, técnicas de Brecht e depois, com a minha
turma de filosofia, resolvi fazer os diálogos de Platão
encenados (fazíamos trabalho de grupo numa época
em que a escola era muito fértil). A partir daí,
comecei a me interessar por cursos de teatro. Fui fazer um curso
do Emílio Fontana, no TBC, e depois de seis meses fui
para o Teatro de Arena, onde tinha o curso do Boal, da Cecília
e da Helene Guaíba. No Teatro de Arena eu me profissionalizei.
Del.Art:
Você chegou a cursar História também?
Denise: Paralelamente eu cursei História;
fiz dois anos. Eu gosto até hoje.
Del.Art:
Como foi fazer parte do Teatro de Arena? Quais as lembranças
que você tem de lá e como ele contribuiu na sua
formação profissional?
Denise: No teatro de Arena eu fiz
Arena Conta Zumbi. O Augusto Boal, e todos do grupo, foram a
minha cartilha, porque eu aprendi tudo com eles. Eu tive sorte.
Fazia o teatro-jornal com um grupo jovem, o Celso Frateschi,
a Dulce Muniz, O Edson Santana, o Hélio Muniz e o espetáculo
E Arena Conta Zumbi, com o Lima Duarte, o Antonio Pedro. Entrei
nesse elenco bem garota, cantando no lugar da Cecília
Tuim, que foi convidada para fazer um filme na Argentina, durante
uma turnê do teatro de Arena no país.
Del.Art:
A Dina Sfat fez parte do elenco, não?
Denise: Eu fiz depois que a Dina fez.
Ela já tinha ido pro Rio trabalhar na TV Globo. A Zezé
Mota também participava. A montagem em que eu participei
foi depois da viagem do grupo à Argentina. Fomos abrir
o Festival de Nancy, na França, e falávamos em
francês. Eu não sei falar francês, mas decorei
o texto todo e fiz. Aconteceram coisas muito mágicas
na minha vida e a minha participação no Teatro
de Arena foi muito importante. Ficamos até o fim (eu,
Aruntim e Celso Frateschi), até o Arena sofrer a perda
da Heleny, que foi presa e assassinada, e de Boal, preso e exilado.
Del.Art:
E o nascimento do Teatro Núcleo Independente, no qual
você atuava ao lado do Celso Frateschi? Como foi trabalhar
com um teatro popular, na periferia de São Paulo?
Denise: Saímos do Arena e criamos
o Núcleo. Quem nos alojou foi o Maurício Segall,
no Teatro São Pedro, e apresentamos Tambores da Noite
lá. A partir do momento em que saímos do São
Pedro, num momento onde o Maurício foi preso e era difícil
resistir artisticamente, nós conseguimos uma ajuda financeira
de uma Ong holandesa, que ficou sabendo do nosso trabalho através
de algumas pessoas e nos arrumou um dinheiro para nos mantermos.
Nós alugamos o local onde hoje é o Café
do Bixiga, que estava abandonado e infestado de ratos, e ali
fizemos uma base.
Trabalhamos com uma espécie de teatro educação,
fazíamos aulas com o povo da periferia, especialmente
da zona Leste.
Fomos para a Penha e depois São Miguel Paulista, e o
projeto sobreviveu durante uns dois, três anos.
As pessoas ali conheciam pouco o teatro e era um momento importante,
onde não podíamos fazer grandes coisas por causa
da ditadura. O teatro era um importante instrumento de discussão.
Del.Art:
E como era produzir diante da censura? Como era a receptividade
das pessoas?
Denise: A ditadura nos subestimava
um pouco, porque o trabalho era periférico e não
tinha grande projeção. Além disso, a ditadura
brasileira tinha contradições. Por exemplo, o
Secretário de Cultura do município de São
Paulo era o crítico e professor Sabato Magaldi, que nos
apoiava. Nós tiramos proveito dessas contradições
para poder exercer o nosso trabalho. O Sabato dedicou uma página
no Jornal da Tarde falando do nosso trabalho, cuja base era
a criação coletiva (que hoje está voltando).
Del.Art:
Até quando durou o Núcleo?
Denise: O Núcleo terminou um
pouco antes de 80, em 78, por aí. Depois fiz uma peça
da Leilah, chamada Vejo Um Vulto na Janela, e depois umas outras
coisas, e surgiu Lua de Cetim.
Del.Art:
Na sua trajetória você trabalhou diversas
vezes com o Márcio Aurélio e encenou diversos
textos do Alcides Nogueira. Fale sobre essas parcerias.
Denise: O primeiro encontro com o
Tide foi na casa do Renato Borghi, onde fizemos uma leitura
de Lua de Cetim, mas ele acabou não participando da montagem
da peça. O Tide é o porta-voz da minha geração,
o autor mais moderno que nós temos, no sentido de inovador.
Ele é corajoso, ousado, com uma sensibilidade que tem
tudo a ver com a minha. Eu adoraria fazer todos os textos do
Tide.
O encontro do Tide e do Márcio é sempre muito
feliz...
Parceria muito ajustada, porque são pessoas com as mesmas
tendências, que têm o mesmo nível cultural
e intelectual.
Del.Art:
Você interpretou a poetisa portuguesa Florbela Espanca,
outro trabalho com o Tide. Como foi a experiência? Você
já conhecia obras da Florbela?
Denise: Eu não a conhecia.
Entrei em contato com a obra através do Alcides e até
hoje eu sonho em fazer a Florbela, apesar de não ter
mais idade, porque ela morre com trinta e poucos anos, mas a
obra dela revela que ela era muito madura pra idade dela.
Del.Art:
O que você gosta de ler e que te completa como artista?
Denise: Eu gosto muito de ler Manoel
de Barros, cheio de concretismo e muitos significados.
O Manoel é totalmente rural e ao mesmo temo trata as
palavras de maneira muito concreta. Ele renomeia as palavras.
Del.Art:
Manoel de Barros, como você disse, é rural...e
você reside na Avenida Paulista. Como é isso?
Denise: Eu tenho fascínio pela
Paulista. As pessoas acham que eu sou louca, principalmente
os cariocas. Eu moro na praia de São Paulo. Estou em
frente à Casa das Rosas, ao Itaú Cultural, eu
tenho o Sesi, o Sesc e uma enorme encruzilhada cultural. Eu
ando muito de metrô, ando muito a pé. Eu não
paro em casa e posso fazer tudo usando o transporte público.
É um privilégio poder morar numa região
da cidade que é bem servida de serviços públicos.
Eu morava na Cincinato Braga e me mudei recentemente para a
Paulista. Foi uma descoberta maravilhosa, porque eu sempre morei
na região de Santo Amaro e a minha vida era muito mais
difícil.
Del.Art: Fale da Oficina
Teatral, escola criada por você e pela sua irmã
Alzira Andrade.
Denise: Eu participei do projeto inicial
e às vezes ministro cursos e conversamos sobre o andamento
da escola, mas ela exige uma continuidade que eu não
tenho possibilidade de dar, porque os meus trabalhos são
imprevisíveis. Agora acabei de fazer um espetáculo
com o Ivaldo Bertazzo; ele me chamou uma semana antes e eu fiquei
totalmente tomada por esse trabalho. Então, se eu tivesse
compromisso de aula eu não poderia cumprir.
A idéia da escola partiu do fato de que a primeira coisa
que as pessoas me perguntam na rua é como se faz pra
chegar na televisão. A mídia valoriza demais os
atores de televisão, mas queríamos mostrar que
a profissão é muito mais do que isso.
Del.Art:
Você vê no teatro um instrumento transformador?
Denise: Quando eu comecei a fazer
teatro, eu acreditava nisso. Hoje se eu emocionar, sensibilizar
uma pessoa, já fico satisfeita.
Del.Art:
Como foi a emoção de ter a sua vida retratada
no livro da Coleção Aplauso e escrito pela Tuna
Dwek – que assinou os maravilhosos Alma de Cetim e A Emoção
Libertária?
Denise: Já faz mais de um ano
que nós terminamos o livro e ele ainda não saiu.
Foi muito bacana. O que mais gostei foi perceber que a minha
caminhada me possibilitou uma segurança no trabalho e
o quanto foi difícil conquistá-la e provar a minha
resistência dentro da profissão.
Del.Art:
Você já dirigiu teatro, como foi a experiência?
Denise: Eu gosto de buscar o processo
do ator, de ver como ele resolve a cena e ajudar no que eu puder.
Eu não tenho a pretensão de ser diretora; sou
atriz e posso dirigir eventualmente.
Del.Art:
Na sua trajetória você tem conseguido
fugir do chamado teatro comercial e realizar trabalhos que primam
pela reflexão e por um conteúdo interessante.
Denise: Eu tive muita sorte, mas fiz
algumas coisas que não gostei tanto. Quando me chamam
para algo que não me dá prazer, não dá
certo. A peça mais comercial que eu fiz foi Feliz Ano
Velho e ela era maravilhosa. Ela não começou comercial,
mas se transformou num enorme sucesso.
Del.Art:
A receptividade para as duas montagens foi a mesma, por parte
do público?
Denise: Não, o púbico
já não tinha a mesma sensibilidade para a história,
porque ele era um espetáculo para o público de
1980.
Del.Art:
Percebo que os jovens vão pouco ao teatro. O Teatro das
Universidades levava teatro a esses jovens, como foi participar
do projeto?
Denise: Foi muito bom levar teatro
aos jovens porque realmente os jovens vão pouco ao teatro
e não é só isso: lêem muito pouco.
Alunos de quarto ano de jornalismo, por exemplo, nos perguntaram
o que é rapé, o que demonstra que nunca leram
uma obra de Machado de Assis, nem José de Alencar...O
Teatro das Universidades foi uma iniciativa maravilhosa do Paulo
Goulart e da Nicette Bruno. Era um texto difícil, mas
o Marcio Aurélio resolveu bem.
Del.Art:
Paralelamente a um teatro mais comercial, o teatro
alternativo tem conseguido chamar a atenção do
público e da crítica?
Denise: Talvez o maior exemplo seja
os Satyros na Roosevelt, que com espaços pequenos levam
àquela praça um público considerável.
É um espaço importante que foi conquistado pelos
Satyros e agora pelo Studio 184 e pelos Parlapatões.
É um espaço importante de uma fatia de público
satisfatória.
Del.Art:
O que você tem visto e gostado no teatro?
Denise: O que eu vi ultimamente que
me chamou bastante atenção foi O Púcaro
Búlgaro, uma peça que ficou em cartaz no Teatro
Sesc Consolação, dirigida pelo Aderbal Freire
Filho. A Javanesa, texto do Tide, me emocionou muito, saí
do teatro com lágrimas, muito emocionada ...
Del.Art:
Você geralmente faz personagens sofisticados (não
necessariamente ricos, mas com um conteúdo interessante;
a que atribui isso?
Denise: Acredito que seja porque eu
busco transmitir todas as contradições dos personagens
que interpreto.
Del.Art:
E interpretar um texto teatral para o rádio, como foi?
Denise: No rádio eu gravei
há pouco tempo A Morte do Caixeiro Viajante, com o Antonio
Petrin. Foi muito legal. Acredito que o projeto esteja continuando.
Eu nunca tinha feito rádio-teatro e ler uma peça
inteira e depois ouvir o programa foi muito bonito.
Del.Art:
E o cinema?
Denise: Eu fiz algumas coisas, mas
aqui no Brasil tem poucos papéis para a minha idade e
quando aparece algum, já tem uma atriz certa para fazê-lo.
Del.Art:
Como é atuar na televisão e lidar com a visibilidade,
já que você disse que usa muito o transporte público,
principalmente o metrô?
Denise: Não acho que o trabalho
na televisão seja melhor ou pior do que o teatro, porque
são trabalhos diferentes. A TV é uma forma importante
de difusão cultural no Brasil, só que, como a
mídia marrom privilegia demais, as pessoas acabam misturando
tudo e se sentem no direito de invadir a sua vida.
Ando normalmente de metrô, algumas pessoas me olham, me
reconhecem, mas não me abordam de maneira desrespeitosa.
Del.Art:
Vários dos seus personagens na TV eram cômicos,
madames (Bicho do Mato, Como Uma Onda, Chocolate com Pimenta
e Força de um Desejo). Como trabalha o seu lado cômico?
Denise: Hoje em dia eu faço
mais tranqüilamente uma comédia. Quando erramos
no teatro ou na TV, o erro fica exposto, não é
como num escritório, que você fica atrás
de uma mesa e pode enviar os papéis numa gaveta ou jogar
no lixo. Não tenho mais medo do ridículo, nem
de errar.
Del.Art:
Você tem contracenado com excelentes artistas nesses trabalhos...
Denise: Eu sou privilegiada porque
a lista dos meus maridos na televisão e no teatro, por
exemplo, é maravilhosa. Eu contracenei com os melhores
atores do Brasil nessas novelas que você citou. Foi um
orgulho ter um ator como o Hugo Carvana interpretando meu marido
em Como Uma Onda. Também já trabalhei com Paulo
Betti em Força de um Desejo, uma novela linda...
Del.Art:
E Querida Mamãe, você tem projeto de fazê-la?
Denise: Eu estou compromissada com
o Petrin para fazer uma peça, então eu não
poderia agora fazer a peça e a Maria Adelaide já
tem uma pessoa que quer montá-la.
Del.Art:
Por falar em Querida Mamãe, como é trabalhar com
o seu filho André?
Denise: Trabalhar com o André
não sou eu que gosto, todo mundo gosta, no teatro e na
televisão. Daqui a pouco eu vou virar a mãe do
André porque ele um grande ator. É difícil
para uma mãe falar, mas não sou eu que estou falando,
as pessoas me ligam para falar.
* André, que estava visitando a sua mãe, disse
ser uma pessoa privilegiada por ter pais maravilhosos, com tanto
talento.
Denise
Del Vecchio é mágica em cena. Talentosa e carismática
vive os personagens com sensibilidade.
Sua
trajetória é privilegiada. Fez parte do Núcleo
do Teatro de Arena em São Paulo. Em 1971, participa do
espetáculo Teatro Jornal 1ª Edição,
encenado por Augusto Boal, e de Arena Conta Zumbi. No ano seguinte,
faz Doce América, Latino América, criação
coletiva.
Ainda em 1972, entrou para o Teatro Studio São Pedro,
de Maurício e Beatriz Segall e encenou Tambores na Noite
e A Semana - Esses Intrépidos Rapazes e Sua Maravilhosa
Semana de Arte Moderna.
Em
1973 fundou, com Celso Frateschi, o grupo Teatro Núcleo
Independente e depois seguiu carreira solo, com a realização
de trabalhos de qualidade, realizando um teatro popular e voltado
para a periferia de São Paulo.
Em 1979, iniciou carreira solo e atuou em Vejo um Vulto na Janela,
Me Acuda que eu Sou Donzela (direção de Emílio
Di Biasi).
Um
dos seus maiores sucessos foi Lua de Cetim, de Alcides Nogueira
(direção de Marcio Aurelio). A qualidade da sua
atuação rendeu-lhe o Prêmio Molière
de melhor atriz de 1981.
Depois de trabalhar com o Teatro do Ornitorrinco em Mahagonny
Songspiel, participou de Feliz Ano Velho (direção
de Paulo Betti e Lembranças da China (texto de Alcides
Nogueira e direção de Jorge Takla), sendo agraciada
com mais um prêmio - o Prêmio Governador do Estado.
Outros
trabalhos: Electra, Vestido de Noiva, Florbela Espanca (texto
de Alcides Nogueira), Três Maneiras de Dançar um
Tango, Um Crime Perfeito, O País dos Elefantes.. Entre
os mais recentes: Mar de Gente (direção de Ivaldo
Bertazzo), Sossego e Turbulência no Coração
de Hortência (Projeto Teatro das Universidades, onde atuou
ao lado de seu filho André Frateschi), A Máscara
do Imperador e Somos Irmãs.
Recentemente,
realizou leitura do texto Querida Mamãe, de Maria Adelaide
Amaral, ao lado de Tuna Dwek e sob a direção de
seu filho, André Frateschi (ator, músico e diretor).
Além do sucesso no teatro, Denise tem uma interessante
trajetória na TV. Foram muitas participações
em produções importantes na história de
nossa dramaturgia, como Bicho do Mato (Record), JK, Como uma
Onda, Chocolate com Pimenta, Esperança, Força
de um Desejo, As Pupilas do Senhor Reitor (SBT), A Viagem, Anos
Rebeldes, Top Model, Fera radical, Os Imigrantes, Ídolo
de Pano (a sua estréia).
¨Para
mim, teatro era forma de agir no mundo, de transformar o ser
humano. Continuo pensando que a arte tem esse poder, mas não
da forma maniqueísta que eu acreditava naquela época(1970)¨